Ministério Público torna Portugal no único país da União Europeia onde partilhar filmes na Net é legal

A ACAPOR — Associação do Comércio Audiovisual de Obras Culturais e de Entretenimento de Portugal comunicou ontem em conferência de imprensa que foi notificada do despacho de arquivamento relativamente às 2000 queixas crime que apresentou junto da Procuradoria Geral da República sobre downloads/uploads ilegais.

O despacho é bem revelador de que tudo está por fazer em Portugal sobre esta temática a começar na Procuradoria Geral da República. O teor do despacho retrata um linha interpretativa por parte de quem tem o dever de investigar o ílicito o que, por si só, inviabiliza todo e qualquer combate à pirataria na internet.

Ficámos também a saber que, afinal, existem mais critérios no Código de Processo Penal, para que se investigue ou não, um determinado crime. Em concreto, e numa nóvel visão, apenas se investiga se isso não der muito trabalho nem custar muito dinheiro.

Neste despacho, porventura futuramente extensível a outros ilicitos e com fortes probalidades de vir ser enquadrado numa jurisprudência catedrática, o Ministério Público não requereu a identificação dos titulares dos IP’s apontados nas queixas porque tal seria “impossível em face do número de IP’s e do que em termos de trabalho material e gastos tal pressupõe (…)” Os associados da ACAPOR continuam a ter os seus deveres face ao Estado – e muitos já têm às costas processos de execução fiscais porque não conseguem pagar os seus impostos face à baixa de facturação – mas não têm o direito de serem protegidos porque tal acarreta muitos incómodos e gastos ao mesmo Estado.

Em toda a desesperada argumentação para justificar a inércia de nada fazer existem vários apontamentos trágico-cómicos, como seja o facto de, no entendimento do Ministério Público, não ser público e notório que os titulares das obras não cedem os direitos para que as mesmas sejam partilhadas em redes P2P quando a esmagadora maioria das obras em causa são obras cinematográficas que, à data, estavam a ser comercialmente exibidas em sala, ou ainda a tentativa de fazer acreditar que nenhum crime cometido na internet pode ser investigado face à “difusão do Wireless e a facilidade de acesso à internet, designadamente por recurso aos Cybercafés” uma vez que “a identificação do equipamento terminal utilizado para efectuar determinada ligação à internet só de forma ínfima nos poderia conduzir à identificação concreta do individuo que efectivamente utilizou o equipamento para partilha”.

Mas o que realmente deve preocupar toda a indústria criativa – não só a portuguesa – é que o Ministério Público assume neste despacho que entende “como licita a realização pelos participantes na rede P2P, de reproduções para uso privado”. Quer isto dizer que em Portugal, até alteração da lei ou mudança interpretativa por parte do Ministério Público, qualquer pessoa pode fazer todos os downloads que entender – de filmes, de música, de livros, de programas informáticos, de videojogos – aproveitando uma disponibilização ilegal que não está a cometer qualquer ilegalidade. Contrariamente a toda a lógica do processo penal em que os que se aproveitam de factos ilícitos cometidos por outros são também eles punidos – veja-se o caso de alguém que aceita receber algo que foi furtado ou roubado que comete assim o crime de receptação, ou mesmo o caso de alguém que encontra algo na rua que sabe não lhe pertencer e dele se apropria que comete o crime de apropriação ilegítima – em matéria de propriedade intelectual o Ministério Público inverte este raciocínio. Portanto basta existir uma cópia ilegal, aquela que é colocada na rede, para que o milhão de cópias feitas a partir daquela fonte ilegítima se convertam em cópias legais. O “original” é ilegal mas as suas cópias são purificadas e tornam-se em cópias legais. Absolutamente extraordinário!

Mas mais. Atendendo a que todas as queixas se reportavam a actividades em P2P, em que a partilha é obrigatória – o que é reconhecido pelo Ministério Público – significa que o MP admite que a excepção da cópia privada também é extensível à partilha. Isto não é uma interpretação extensiva da lei, é uma pura criação de lei para justificar não ter que investigar!

Pergunta-se agora: Quem vai querer alugar um DVD se pode na mesma hora sacá-lo da internet e vê-lo, sem pagar nada a ninguém, tudo na máxima legalidade? Ou seja em Portugal, na realidade, quem paga para ter DVDs, Cds, livros, videojogos, programas informáticos, ou é estúpido ou é benemérito.

O problema é que a indústria depende dos estúpidos e dos beneméritos para continuar o seu caminho. Aliás os que gostam de música, cinema, livros ou videojogos e nada pagam para deles usufruírem precisam dos estúpidos e dos beneméritos para que possam continuar a aceder a todos esses conteúdos porque são eles que vão financiando a actividade.

A ACAPOR entretanto já requereu a sua constituição como assistente no processo e arguiu pela nulidade insanável do inquérito uma vez que, na verdade, nem chegou a haver qualquer inquérito.

O único ponto positivo da decisão é ter ficado claro que o problema da pirataria na internet só ficará resolvido com uma revolução absoluta na legislação, retirando o papel principal desta temática ao Ministério Público e conferindo-o a uma entidade administrativa. A reforma da legislação já está prometida pelo Sr. Secretário de Estado da Cultura e o prazo limite é o final do presente ano.